Foram 15 dias no país da bota. 15 dias de liberdade, fazendo o que me dava na telha na hora que eu escolhesse. Teve dia que acordei depois das 10 da manhã, teve dia que almocei sorvete, teve pelo menos um pequeno acontecimento alegre todos os dias… serendipity. E teve muita culpa materna, muita reflexão, solitude e solidão.
Volto para Doha pensando que minha “fugidinha” valeu a pena e que ela foi exatamente isto: um escape da minha realidade. Nada de errado em querer uns dias de descanso da vida doméstica, maternal e conjugal. É estranho voltar a realidade, me sinto como se eu tivesse saído de um filme super cabeçudo no meio da tarde na avenida Paulista. Caos que não para enquanto tento me situar. Volto pensando em coisas que gostaria e poderia mudar na minha vida, coisas que não me deixam feliz ao voltar.
Esta foi minha primeira viagem sozinha-sozinha. Ano passado tive três dias em Amsterdam mas foram apenas três dias e em um deles encontrei um amigo.
Na Itália não encontrei ninguém, conversei com pessoas que conheci no caminho mas não estabeleci nenhum vínculo. Não tive companhia em nenhuma refeição. Se antes da viagem estava preocupada com coisas como: vai ser constrangedor sentar no restaurante e comer sozinha, durante a viagem me surpreendi desfrutando de comidinhas de rua (sorvete, pizza, sanduíche) que pegava e sentava em alguma escadaria ou parque e comia feliz observando os transeuntes e o lugar na companhia de uma coca zero geladinha.
E as vezes que sentei em restaurante pra comer realmente senti o constrangimento de comer sozinha nos primeiros dias, sim, as pessoas te olham… mas depois da terceira ou quarta vez já tirei de letra. Abracei o constrangimento a ponto de me sentir de boa com ele, e, também você meio que aprende (ou se deixa se levar pelo feeling) a detectar lugares legais e acolhedores. Aí é só sentar e correr pro abraço solo. Vez ou outra os arredores com dramas familiares e/ou de casal também me davam um certo alívio de estar em minha própria companhia. Em outras palavras: aprendi a apreciar comer só. E nem preciso falar sobre o fato de comer sem ser interrompida, um deleite!
Pensei muito em Yasmeen e Alicia. Senti uma culpa enorme por não viajar com elas há anos. Planejei algumas viagens com as duas na minha cabeça e pensei que preciso fazer acontecer, com ou sem o apoio do pai delas. Doha no verão é praticamente uma cidade fantasma, a grande maioria da população viaja pra fugir das altas temperaturas que impossibilitam qualquer atividade ao ar livre. Além disso, aqui não tem muito verde e nem natureza, tem praia, tem o deserto mas… não tem verde. E eu acho tão difícil alguém ser feliz sem verde.
Yasmeen e Alicia adoram ir ao parque, é o lugar preferido das duas. Então privá-las do contato com o verde, com a natureza é algo quase cruel. No outro lado da balança, a convivência com as duas é difícil. Yasmeen não se comunica, faz muitos sons ininteligíveis e também tem o hábito de cuspir como forma de se expressar. Não consigo visualizar Yasmeen em um voo de 14 horas para o Brasil. E nem Alicia que frequentemente tem meltdowns intensos. No pior dos cenários quando penso em um meltdown da Yasmeen visualizo um voo de emergência.
Este medo me bloqueia de sair daqui com duas. O medo do voo, o cansaço físico e mental que é desestruturar a rotina delas- e a minha- e o gasto financeiro. Sempre quando colocamos na balança e lembramos da nossa última e traumatizante viagem em família em 2021 chegamos a conclusão de que não vale a pena, de que não vale o stress e o gasto. Só que agora, me sinto mais madura pra segurar a bronca do que vier, penso que a recompensa de ver minhas filhas felizes explorando um lugar diferente e verde, e, fugindo de calor insuportável nem que seja por uns dias, vale a pena. Será?
Também levo em conta que as duas estão maiores assim como os desafios. Não é que elas estão crescendo e as coisas estão ficando mais fáceis. Elas não estão ficando mais independentes.
É o sonho da maternidade vivido do avesso neste sentido. Ao mesmo tempo é uma experiência de maternar única que proporciona momentos nos quais eu me sinto grata por ter duas filhas no espectro que me ensinam tanto sobre resiliência e pequenas vitórias.
Olho com desdém algumas mães padrão-ouro da escola britânica de Naomi e Lana, vejo o quanto exigem de seus filhos, o quanto as crianças se esforçam para serem super-achievers em esportes e academicamente. Acho tão raso. Profundidade mesmo eu vejo em eventos da escola para crianças deficientes de Alicia e Yasmeen onde a turma sobe no palco para cantar uma música e todas as crianças cantam extremamente desafinadas e totalmente fora do ritmo com algumas ainda chamando seus pais (Mãe! Olha! Você tá vendo?!).
Um caos completo e maravilhoso. Desafinam o coro dos contentes. O coro da escolinha particular onde os sucessos acadêmicos são celebrados. Cogito se em um futuro não muito distante este tipo de “sucesso” não será performado por IA e aí o que fará de nós superiores será justamente nossas características mais humanas, entre elas essa capacidade de subir em um palco e cantar uma música. Então, sinto-me grata por viver este tipo de experiência, acredito que elas me façam ter ainda um pouco de fé da humanidade. Mas logo tomo um balde de água fria quando vejo o stories da escola britânica celebrando a medalha de ouro de natação do aluno xyz. Não é que eu não aprecie o esforço e a disciplina, é que eu acredito que a capacidade humana de empatia e amor valham mais. Uma medalha de ouro em volêi ou matemática não chega nem perto do valor que tem minha filha conseguir falar bye (uma sílaba) na saída da escola para sua professora. Entendem? E talvez a comparação não caiba porque são pessoas com habilidades diferentes, mas é assim que sinto. Talvez se minhas quatro filhas fossem neurotípicas eu entenderia melhor o outro lado da moeda, exigiria mais delas academicamente, sonharia com elas recebendo a estrela da semana or whatever mas gosto de pensar que não… sempre fui mais de dar valor aos sentimentos e emoções. Pro bem e pro mal.
Em abril saímos um dia para jantar em família, o que é uma raridade, nunca fazemos o esforço de sair de noite com as meninas, mas neste dia saímos e a noite estava super agradável com uma temperatura amena e uma brisa refrescante vinda do mar. O cabelo da Yasmeen estava solto, outra raridade, e ela sorria muito. Nem o dente quebrado da frente conseguia deixa-la feia, se bem que pensando bem o dente quebrado não consegue deixá-la feia anyway, mas neste dia ela irradiava alegria e esta alegria a tornava mais linda do que já é (e ela é muito linda).
Ela estava muito feliz em sair de noite, em caminhar pela marina e sentir a brisa do mar acariciando o rosto enquanto olhava os barcos ancorados. E isto em Doha, com muito concreto em volta. Então, tenho certeza que ela adoraria estar em uma praia brasileira ou até mesmo no meu amado Parque do Ibirapuera sentada na grama vivenciando um por do sol daqueles que torna as palavras redundantes.
Foi em uma troca de trem em algum dos vilarejos de Cinqueterre que eu lembrei deste jantar em abril. Eu vi uma família constituída por mãe, pai e filha. A mãe ajudava a menina que devia ter uns 13,14 anos a descer as escadas e moça ria, sorria irradiando a mesma alegria que Yasmeen irradiava na noite do jantar da marina. Atrás das duas estava o pai. Não identifiquei a menina com Yasmeen apenas por ela ser deficiente mas sim pela alegria que ela emanava. Uma alegria que sinto que privo minha filha mantendo-a em Doha o ano inteiro.
Ver aquela moça me fez pensar que é possível. Fácil está longe de ser, mas também não é nada fácil passar o verão inteiro aqui. Yasmeen e Alicia precisam de férias, assim como eu e o pai delas e suas irmãs precisam e, aqui não cabe crítica social do tipo “o direito de todos ao lazer”, o qual diga-se de passagem sou totalmente a favor, viva os países que possuem benefícios e proporcionam este tipo de experiência a famílias com acesso restrito a lazer, a férias e etc. A ideia aqui é sobre férias da nossa rotina, do concreto, da cidade, do deserto, do calor. Falo ainda sobre morar em um país que não é o nosso, cuja a maioria da população é de expatriados então ao mesmo tempo em que existe a diversidade de culturas, não existe fazer parte significativamente de nenhuma. Não pertencemos. Não saberia falar sobre o impacto deste tipo de realidade em Yasmeen e Alicia mas sei que se sentem em casa ao lado de suas avós seja no Brasil ou na Inglaterra.
Voltando a moça na estação de trem, a visão que tive dela e de seus pais fez meu dia e acabou com ele também, me deu esperança de viajar com minha filha, me fez pensar que é possível mas também me fez me sentir uma culpa cujo peso ultrapassa qualquer unidade de medida. Escrever sobre isto é bem difícil porque sinceramente não sei se vou viajar com Yasmeen e Alicia. Uma coisa é pensar tudo isso, é chorar no trem depois de pensar tudo isso e outra coisa é a nossa convivência com desafios diários e exaustivos. De qualquer maneira, a semente está plantada, talvez germine rápido, talvez demore um ano ou mais, talvez não vingue.
Espero que a reflexão tenha valido a pena pra quem leu até aqui. Esta cena foi a que de alguma forma engrandeceu minha viagem.
No mais, a Italia é maravilhosa. Corro o risco de dizer que Roma é minha big city favorita com seu lado histórico e cosmopolita convivendo junto e misturado. E não é uma cidade aristocrática a la Londres ou Paris… é mais low profile, gostosíssima!